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sábado, 24 de outubro de 2015

O transtorno bipolar faz cada vez mais pessoas alternar depressão e euforia sem escalas.

 
Por Redação Super
Flávia Gianini

Em 1962, numa visita à Argentina, o poeta americano Robert Lowell mostrou que não ousava apenas em seus versos. Ele ofendeu o ditador José Maria Guido em plena Casa Rosada, sendo expulso da residência oficial. Com a tarde livre, partiu para uma série de escaladas em monumentos públicos, performance que atingiu o clímax quando Lowell discursou nu do alto de uma estátua. Após aborrecimentos com médicos provincianos, voltou para casa tendo conhecido intelectuais do porte de Jorge Luis Borges e cheio de ideias para novos poemas.
Esse retrato de um artista transgressor omite detalhes importantes. A bordo de 6 martínis duplos antes do almoço, Lowell sabotou um evento presidencial em sua homenagem. As tais escaladas revelavam seu instinto autodestrutivo – ele quase apanhou enquanto, pelado, declarava-se “o césar da Argentina”. No encontro com Borges, o argentino conta que o americano “jogou-se no chão e ficou gemendo em posição fetal”. Paranoico, Lowell recorreu a comunistas para fugir do país, causando um incidente diplomático só solucionado com sua internação psiquiátrica – foram mais de 20 ao longo da vida. “Foram precisos 6 enfermeiros parrudos e uma camisa-de-força para contê-lo”, lembra Keith Botsford, sua “babá” na viagem. A essa altura, o vencedor do Pulitzer vivia à base de álcool e remédios, cada vez menos produtivo e mais instável. Ele sofria de transtorno bipolar.
O surto de Robert Lowell mostra como é falso o charme dessa doença psiquiátrica, que pode levar aos extremos da euforia e da depressão. Há cada vez mais gente sofrendo de bipolaridade. Eles não precisam de admiração nem desprezo, mas de ajuda.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) estima que 10% das pessoas sofrem de algum distúrbio de oscilação de humor, com diferentes graus de prejuízos na vida profissional e pessoal. Dentro desse universo estão os que sofrem de transtorno bipolar. Ao longo dos anos, cada estudo que tentou dimensionar a parcela da população mundial com a doença encontrou um número maior que o anterior: o 1% em 1980 seria hoje, pelas estimativas menos alarmistas, 3,5%.
Não deveria, mas soma-se a esses uma multidão que associa esse mal da mente a sentimentos intensos, sede de viver, alma de artista, entre outros clichês, e adota para si o rótulo de bipolar.Quem faz isso acaba banalizando e transformando em moda uma doença grave, o que afasta do tratamento os verdadeiros bipolares – que, por uma combinação de estímulo e predisposição, existem em números cada vez maiores.

Manual bipolar

Um das causas do crescimento do transtorno bipolar é artificial: por mudanças nos critérios psiquiátricos, mais gente passou a ser considerada bipolar. Essa história começa nos anos 60, quando o problema ainda se chamava psicose maníaco-depressiva, nome que explica seus altos (mania) e baixos (depressão). Como a maioria dos então maníaco-depressivos não apresentava comportamento psicótico clássico – perda de contato com a realidade, delírios, alucinações –, os americanos rebatizaram a psychosys de illness, “doença”. Nos anos 80, surgiu uma nova nomenclatura: bipolar disorder, logo retraduzida para o português como transtorno bipolar. 
 Independentemente do nome do problema, antes só era considerado bipolar justamente quem fosse de um polo a outro. Em um extremo, episódios maníacos à la Robert Lowell em Buenos Aires; no ponto antípoda, a depressão clássica, aquela que não deixa a pessoa sair da cama, que o poeta também enfrentava de tempos em tempos. 
 Mas as coisas mudaram desde a 4ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Desordens Mentais (DSM-IV, na sigla em inglês), em 1994. O DSM é como uma bíblia dos psiquiatras dos EUA, e por tabela, do resto do mundo: se a doença está ali ela “vale”, assim como modificações em seu conceito. Pois o manual redefiniu a bipolaridade, dividindo-a em 4 níveis de gravidade (ver quadro Dois polos, 4 problemas), automaticamente reclassificando como bipolares casos mais leves de oscilação de humor. Agora para ser classificado como bipolar não era necessário ir de um extremo a outro: bastava oscilar dentro de um espectro menor. É bipolar o sujeito que não chega a ficar nu em público, mas ameaça fazê-lo.
Um efeito colateral dessa tendência de “fatiar” doenças já conhecidas, criando novos transtornos, é o risco de tratar um problema localizado e perder o quadro mais amplo. “Criou-se um distúrbio específico para compras compulsivas, quando isso é um dos principais sinais de bipolaridade. É necessário que um quadro psiquiátrico seja avaliado em sua totalidade, e não apenas em sintomas”, afirma o psiquiatra e doutor em neurociência Diogo Lara, da PUC-RS.
Ou seja: para quem já se surpreendia com os 3,5% da OMS, há especialistas que acham que tem muito bipolar por aí sendo mal diagnosticado com ansiedade, fobia ou depressão – a unipolar mesmo. Um estudo recente mostrou que, entre pacientes internados pela primeira vez com depressão comum, metade veio a desenvolver um episódio de euforia maníaca nos 15 anos seguintes.

Mundo bipolar

Sim, os atuais critérios de diagnóstico ampliaram o número de bipolares e simpatizantes (quem nunca ouviu alguém dizer que é “um pouco bipolar”?), geralmente um portador do transtorno da cara-de-pau. Mas a impressão geral dos psiquiatras é que, sozinhos, os novos conceitos não explicam o aumento, e que a porcentagem dos que oscilam entre euforia e depressão está mesmo aumentando. A hipótese mais provável é que a origem desse crescimento seja ambiental – e pode vir desde o berço.
A infância é um período onde a mente é altamente moldável, e os bebês de hoje já chegam ao mundo rodeados de um número sem precedente de estímulos visuais, sonoros, olfativos, gustativos e táteis. Seus quartos são muito coloridos, cheios de móbiles e brinquedos barulhentos. Desde muito novas, nossas crianças já ouvem música e assistem TV, navegam na internet, jogam games cada vez mais fascinantes, provam todo tipo de comida e experimentam diferentes meios de locomoção.
“Toda essa carga de estímulos e novidades a que estamos expostos desde o nascimento poderia explicar parte dos diagnósticos. Principalmente a bipolaridade na infância, considerada um mito há 15 anos e hoje uma quadro indiscutível”, afirma Kay Jamison, psicóloga, Ph.D. em transtornos do humor e professora da faculdade de psiquiatria da John Hopkins. Uma das maiores autoridades no assunto. Jamison sabe do que está falando: aos 17 anos, teve sua primeira crise maníaca. Seu livro com o psiquiatra Frederic Godwin, Manic Depressive Illness (“Doença Maníaco-Depressiva”, sem edição brasileira) é uma referência desde a 1ª edição, em 1990.
Mas a origem dos dois polos não fica apenas entre 4 paredes. A gente vive em uma sociedade que valoriza a competição, a criatividade, o risco, e consequentemente desvaloriza o comedimento, a calma e a discrição. Até aí, tudo bem: ser ousado não faz de ninguém bipolar. Mas martele esses conceitos na cabeça de uma pessoa com temperamento forte, dada a extremos, durante vários anos, com várias mensagens subliminares ou nem tanto... e pronto. Mais um para se juntar aos 340 milhões de terrestres que sofrem com o transtorno. “A combinação de excesso de estímulos internos e externos promove o temperamento de busca de novidades e não desenvolve a persistência. Esse é um padrão de comportamento em bipolares”, afirma Lara.
Da creche ao escritório, dá para entender por que muita gente sem-noção resolve transformar bipolaridade em desculpa para seus atos. Até que cobina bem com o espírito dos tempos sair do normal de vez em quando. Mas valorizar esse descontrole pode ter consequências sérias a longo prazo – principalmente se a combinação de mania e depressão for uma herança de família.

Família bipolar
Além dos fatores ambientais, outra parte da equação que gera a bipolaridade é a carga genética. Para muitos cientistas, são os genes que determinam a existência de um quadro maníaco-depressivo: o ambiente só daria um empurrãozinho ladeira abaixo – e acima. Os números corroboram a teoria. O risco de o irmão gêmeo de um bipolar também ser, por exemplo, é em média de 70%. Entre parentes de 1º grau, as possibilidades de que haja reciprocidade do transtorno ficam em torno de 15%.
Até a combinação de pai e mãe instáveis, ainda que não exatamente bipolares, pode se somar e gerar uma pessoa com o transtorno. O psicólogo Lara explica que bipolares do tipo 1, o mais grave, que apresenta todo o espectro de variação de humor, às vezes não têm parente com a doença, mas a avaliação detalhada mostra que familiares próximos são ciclotímicos – no jargão médico, pessoas que alternam estados apáticos e energéticos, timidez e expansividade, o chamado sujeito “de lua”. “A combinação de vários genes ciclotímicos pode formar um bipolar”, explica Lara.
A análise da árvore genealógica de bipolares famosos mostra a força dessas relações genéticas. O pintor holandês Vincent van Gogh (1853-1890) seria diagnosticado hoje como um caso grave de bipolaridade. Quando estava feliz, passava temporadas pintando obsessivamente obras de encher os olhos. Quando estava triste... bem, bastou se desentender com o amigo e colega Paul Gaugin para cortar fora a orelha esquerda. Ele tinha a quem puxar: seu pai sofria de uma doença psiquiátrica não definida, assim como dois de seus tios paternos. Da mãe não se sabe, mas a tia materna provavelmente era epilética. Dos 4 irmãos Van Gogh, 3 apresentaram distúrbios psi- quiátricos. Assim como o irmão pintor, Theo era bipolar. Sua irmã Wilhelmina viveu por mais de 30 anos em hospícios, e o irmão Cornelius cometeu suicídio.
O escritor Ernest Hemingway também teve sua árvore genealógica marcada por perigosas oscilações de temperamento. Seu pai, dois irmãos e ele mesmo, todos bipolares, se mataram. Soma-se à lista suicida a sua neta Margaux, atriz e modelo. Dois de seus 3 filhos também tiveram problemas: Patrick tinha psicose pós-traumática, e Gregory, que era bipolar e transexual, morreu de doença cardiovascular na prisão em 2001 – Gloria, como passou a se chamar após a mudança de sexo, estava presa havia 6 dias por atentado violento ao pudor.
Análises de tomografias computadorizadas mostram que bipolares genéticos têm redução na massa do córtex pré-frontal e aumento da amígdala. A hipótese é que essas alterações são causadas pela aceleração de conexões entre os neurônios. A velocidade neuronal seria também a responsável pela enxurrada criativa geralmente relacionada à euforia. A má notícia é que essa atividade toda no cérebro pode gerar mal-funcionamento das áreas afetadas.
Mas qual seria a consequência disso para a vida do maníaco-depressivo? Bem, o córtex pré-frontal é a parte responsável pela memória, a moral e os sistemas de recompensa. Já a amígdala está relacionada com motivação, medo e inibição. Coincidência? Claro que não, as peças se encaixam: é justamente quando essas duas partes do cérebro não estão funcionando direto que os bipolares embarcam nos comportamentos tipicamente relacionados ao seu transtorno.

A caixa de cada um
Na origem latina, humor significa líquido, fluido. Curiosamente, os psiquiatras gostam de compará-lo com uma caixa-d’água: o cano de entrada é o que os médicos chamam de ativação; o cano de saída é a inibição; e a boia, o controle. Em uma pessa equilibrada, o fluxo de água (de humor) é normal.
Mas os bipolares têm a boia quebrada. Durante a mania extrema, entra muita água na caixa, mas o cano de saída entope e a pressão extravasa o líquido. Já na depressão pesada, é como se o cano de entrada estivesse entupido e todo o líquido saísse, deixando a caixa vazia, ou a pessoa sem motivação.
Mas não existe só caixa-d’água vazia ou caixa cheia. “Dizer que bipolaridade é só alternância de euforia e depressão é apresentar um quadro maniqueísta do transtorno”, garante a psiquiatra americana Jamison. “Existem muito mais tons de cinza do que se imagina.” Apesar de não alcançarem as nuvens nem o fundo do poço, a vida dessas pessoas é marcada por irritabilidade e medo, e é preciso estar atento aos sintomas.
Em meio a metáforas hidráulicas e cromáticas, fica a pergunta: o que tem de mais em ser eufórico de vez em quando? Quem não gostaria de poder canalizar uma energia feroz, inteligência rápida e talento abundante? Ou, por outro lado, curtir uma fossa daquelas, lavar toda a roupa-suja em casa ou na rua sem ficar remoendo os problemas?
Parafraseando Anna Karenina, dá para dizer que todas as crises depressivas se parecem, mas cada crise eufórica é eufórica à sua maneira. Jamison conta o caso de “Jack Bauer”, um jovem de 18 anos que acreditava que sua vida estava sendo filmada 24 horas por dia. Há também o “Mente Brilhante”, um senhor elegante e bigodudo de 45 anos que acreditou ter descoberto a solução para a economia mundial e escrevia páginas e páginas com esquemas. “Até mesmo uma bipolaridade mais branda pode queimar o filme. Um paciente hipomaníaco traiu a esposa durante uma crise que durou dois dias e engravidou uma mulher que nunca tinha visto”, conta Lara.
O poeta Robert Lowell tinha uma frase sobre as duas faces do seu distúrbio: “A depressão é pessoal, e a euforia é social” – e, por isso, menos tolerada. Como o bipolar quase sempre tem um comportamento normal em público, suas crises maníacas parecem cafajestada e não doença. Mas são. “O bipolar sabe a diferença entre certo e errado, mas não consegue se controlar”, explica a presidente da Associação Brasileira de Transtornos Afetivos, Helena Calil.
Vivendo num mundo bipolar, como saber o limite entre a doença e a normalidade? “Se o comportamento prejudica a vida da pessoa, deve-se procurar ajuda”, afirma Lara. Cada um sabe quando enche ou esvazia a sua caixa-d’água.

10% da população mundial sofre de distúrbios de oscilação do humor.
3,5% das pessoas têm transtorno bipolar. Em 1980, era 1%.
70% é o risco de um gêmeo de bipolar ter o mesmo distúrbio.
15% é o risco de um parente em 1º grau de bipolar também sê-lo.
1994 - Nesse ano, entrou em vigor uma definição mais ampla de bipolaridade.
25% dos bipolares tentam suicídio ao menos uma vez na vida.

Causas
Três motivos explicam a presença - e o aumento - da bipolaridade
Diagnóstico
A ampliação dos fatores que indicam a pessoa portadora da doença no DSM-IV também fez com que mais gente entrasse na classificação.
Ambiente
Crianças cheias de estímulos desde a infância e uma pressão social para se destacar podem responder pelo aumento dos casos de transtorno bipolar.
Genética
Não se sabe ainda qual o mecanismo, mas o fato é que a bipolaridade, como outros problemas psiquiátricos, parecem passar de pais para filhos.
Consequências
O maníaco-depressivo vive oscilando entre polos
Tristeza Não tem fim...
O outro lado desse desequilíbrio é a depressão. Em casos mais extremos, a pessoa não consegue nem sair da cama. Geralmente é a face menos conhecida do problema, por acontecer no âmbito privado.
...Felicidade sem fim
No estado maníaco, a pessoa fica muito animada, tem ímpetos criativos e afetivos, sem reconhecimento de limites normalmente respeitados. A pessoa sabe o que é certo e errado, mas não consegue se controlar. Muitas vezes o surto é turbinado com o consumo de álcool e outras drogas.

Dois polos, 4 problemas
O DSM-IV, guia de doenças psiquiátricas dos EUA, divide os bipolares em 4 categorias
1. Apresenta toda a amplitude de variação do humor, do pico mais alto (mania plena), que pode durar várias semanas, até depressões graves. Em geral, inicia-se entre 15 e 30 anos, mas há casos de início mais tardio.
2. A fase eufórica é mais branda e curta, chamada de hipomania. Os sintomas são semelhantes, mas não prejudicam a pessoa de modo tão significativo. As depressões podem ser profundas – e podem a parecer só após os 40 anos
3. É uma classificação usada quando a fase maníaca é induzida por antidepressivos ou estimulantes. Ou seja, a pessoa é bipolar, mas o polo positivo só é descoberto pelo uso dessas drogas.
4. Nunca tiveram mania ou hipomania, mas têm um histórico de humor um pouco mais vibrante, geralmente visto como algo bom. A fase depressiva pode ocorrer só na faixa dos 50 anos, sendo bem oscilatória.


Charme da loucura
Ao longo da história, criatividade e bipolaridade sempre se cruzaram
Bipolaridade e genialidade são parceiras de longa data. Para os antigos gregos, a loucura era nobre por ser divina, enquanto a sobriedade era tediosamente humana. Entre os primeiros filósofos, o termo loucura não indicava só psicose, mas uma ampla gama de estados alterados. Platão colocou essas palavras na boca de Sócrates no diálogo Fedro: “Loucura, que vem proporcionar o dom do céu, é o canal através do qual recebemos as maiores bênçãos”.
Recentes pesquisas sugerem fortemente que, em comparação com a população em geral, escritores e artistas mostram uma taxa de bipolaridade ou depressão bem acima da média. Artistas apresentam 3 vezes mais casos de psicose, tentativas de suicídio, transtornos de humor e abuso de álcool e drogas. A proporção de internações psiquiátricas forçadas é 7 vezes menor entre os não-artistas. As evidências levam as pessoas a considerar que um pensamento destruidor, muitas vezes psicótico, e frequentemente letal, como os da doença maníaco-depressiva, pode transmitir algumas vantagens (como o aumento da potência imaginativa, intensificação das respostas emocionais e aumento da energia). “Isso é diminuir a noção de individualidade artística e trivializar uma doença grave”, opina Jamison.

Para saber mais
Temperamento e Personalidade
Diogo Lara, Revolução de Idéias.
Touched With Fire: Manic Depressive Illness
Kay Jamison, Free Press.
www.psicosite.com.br/cla/DSMIV.htm
FONTE: http://super.abril.com.br/cultura/mais-ou-menos

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